quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sofrer agressão doméstica não é “coisa de mulher”. Mas a Lei Maria da Penha é


Alice Bianchini*
Maíra Zapater**

Não raro, a Lei Maria da Penha é objeto de críticas por garantir maior proteção apenas às mulheres – e não aos homens – vítimas de violência doméstica. Afirma-se, equivocadamente, que se a violência doméstica pode atingir pessoas do sexo masculino, até mesmo pertencentes a grupos vulneráveis (como crianças e idosos), o fato de a lei não se voltar à proteção destas pessoas consistiria flagrante injustiça e desrespeito ao princípio constitucional da igualdade. Tais críticas refletem, na verdade, profundo desconhecimento da Lei Maria da Penha e do Código Penal, e merecem esclarecimentos.

A Lei Maria da Penha não cria o tipo penal da violência doméstica, mas sim define legalmente no seu artigo 5º o âmbito doméstico e as relações familiares e de afeto; e em seu artigo 7º arrola diversas modalidades de violência contra a mulher que, quando praticadas nas situações descritas no artigo 5º (âmbito doméstico ou familiar e relações afetivas), farão incidir as medidas previstas na Lei Maria da Penha, as quais poderão ser de natureza policial ou judicial, tanto na área criminal (por exemplo, prisão preventiva do agressor) quanto cível (caso da separação de corpos e proibição de visitas a filhos menores) e administrativa (como a suspensão do porte de armas). As mencionadas medidas protetivas, juntamente com políticas públicas integradas de prevenção (que abrangem, entre outros pontos, a promoção de estudos sobre o tema, fiscalização dos meios de comunicação para evitar reforço e perpetuação de estereótipos discriminatórios, desenvolvimento de infraestrutura para atendimento multidisciplinar, etc) tem por escopo atender as demandas geradas pelas especificidades que caracterizam a violência doméstica praticada contra a mulher: historicamente se observa a persistência de algumas características desta situação de violência, tais como relação de dependência econômica e emocional entre agressor e agredida, naturalização e banalização do conflito (ocasionando maior tolerância para com as agressões), despreparo de profissionais atuantes na área de atendimento às vítimas (desestimulando denúncias), enfim, toda sorte de vulnerabilidades peculiares que originaram a adoção das políticas especialmente direcionadas à mulher vítima de violência doméstica.

Contudo, isto não implica, em absoluto, a desconsideração da gravidade do crime de lesão corporal praticado em situação de violência doméstica contra qualquer pessoa, independentemente do gênero: as relações domésticas e/ou familiares deveriam se dar em ambiente livre de violência, onde o indivíduo deveria encontrar refúgio, aconchego e confiança recíproca entre seus entes mais próximos. A especial gravidade que reveste a agressão praticada nesta esfera foi contemplada pelo legislador, que transformou a lesão corporal praticada em situação de violência doméstica em forma qualificada do delito, acrescendo no ano de 2004 o parágrafo 9º ao artigo 129 do Código Penal, e que se trata de crime comum quanto aos sujeitos: qualquer pessoa pode ser autor ou vítima do crime de lesão corporal intrafamiliar. Em 2006, a Lei Maria da Penha alterou o parágrafo 9º aumentando as balizas da pena prevista para a forma qualificada para 3 meses a 3 anos de detenção, com a possibilidade aumento de 1/3 da pena se a lesão for grave, nos termos definidos no parágrafo 10 do mesmo artigo.

Todavia, não foi feita qualquer alteração relativa às características exigidas para os sujeitos do crime, que permaneceu como crime comum quanto aos sujeitos. Desta forma, decidiu com acerto o Superior Tribunal de Justiça[RHC 27622 - J. 07/08/2012] ao considerar como lesão corporal qualificada pela circunstância da violência doméstica o caso do filho que fere o próprio pai, não obstante, sem aplicar as medidas especificamente direcionadas à mulher pela Lei Maria da Penha.

Por fim, apenas lembrando que para vítima do sexo masculino, podem, a depender das circunstâncias, ser aplicadas as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como no Estatuto do Idoso (o que também valeria para vítimas do sexo feminino).

* Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC). Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br. Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências Penais da Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN – Instituto Panamericano de Política Criminal. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini

** Mestranda em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da USP). Graduada em Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH-USP). Especialista em Direito Penal (ESMP). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-FFLCH/USP) e do Instituto LivroeNet. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br//mairazapater/

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