quinta-feira, 20 de junho de 2013

Sentença para a Dona Maria entender

Publico uma sentença bem inusitada proferida por um juiz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O magistrado resolveu elaborar uma sentença bem didática para que a ré, Dona Maria, conseguisse entender o que estava acontecendo.


Processo nº: 
011/2.09.0004xxx-8
Natureza:
Porte de Arma
Autor:
Justiça Pública
Réu:
Maria A.P.S.
Juiz Prolator:
Juiz de Direito - Dr. Ricardo Luiz da Costa Tjader
Data:
20/01/2012


Vistos e examinadas estes autos, relato.

MARIA A.P.S., 68 anos de idade na data do fato,
foi denunciada pelo
MINISTÉRIO PÚBLICO
por ter violado ao disposto no art. 16, parágrafo, inc. IV da Lei nº 10.826/03.
                     
Consta na denúncia que no dia 09/10/09, na rua Tupiniquins, nº 495, a denunciada possuía uma arma de fogo, garrucha, calibre 0.40, sem marca aparente, com numeração raspada, acabamento oxidado desgastado, em mau estado de conservação, municiada com 2 cartuchos calibre .38. Esses objetos foram encontrados na residência da ré, embaixo de um colchão, durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão. Perícia comprovou a eficácia da arma e da munição apreendidas.
A denúncia foi recebida em 06/08/10 (fl. 43).
A ré respondeu à acusação (fls. 45ss). Negou o fato.
Foi realizada audiência (fls. 60ss), sendo os depoimentos prestados reproduzidos a partir da fl. 62.
O Ministério Público apresentou alegações escritas a partir da fl. 71. Disse estarem provadas a materialidade e a autoria e, analisando a prova oral colhida, concluiu pela condenação da ré nos termos da denúncia. Acrescentou que independentemente de se tratar de arma de uso permitido, restrito ou proibido, o fato de possuir número de identificação raspado insere o fato nas disposições do art. 16 da Lei nº 10.826/03. Requereu a condenação.
A defesa apresentou memoriais (fls. 78ss). Disse ser inaproveitável a prova colhida no inquérito. Disse faltar dolo na conduta da ré, e que os depoimentos de policiais não podem ser levados em conta, faltando também prova incriminadora. Afirmou ainda que a conduta da acusada não causou risco à sociedade. Disse que o fato narrado se ajusta ao tipo penal do art. 14 da Lei nº 10.826, e não ao art. 16, somente aplicável aos casos em que arma de uso não permitido teve a numeração raspada. Em caso de condenação, requereu fosse a pena aplicada no mínimo, com incidência das atenuantes previstas no art. 65, I, II e III, d, do Código Penal.
Relatado, passo a fundamentar.

A materialidade do fato descrito na denúncia se acha demonstrada através do relatório do mandado de busca e apreensão de fl. 10vs, no auto de apreensão de fl. 12 e nos Laudos Periciais de fls. 32ss e 38ss. A autoria vem igualmente demonstrada, com complementos na prova oral colhida.
A testemunha SÉRGIO, em seu depoimento de fl. 65, disse que no cumprimento de mandado de busca e apreensão de arma de fogo na residência da denunciada, ele localizou a arma apreendida sob um colchão no quarto que a ré alegou ser o seu. Disse ainda que a arma estava municiada com dois cartuchos, e que a ré afirmou que a arma lhe pertencia.

ADELAR, nas fls. 66ss, disse que a arma apreendida na residência da ré pertencia ao filho dela, falecido já há algum tempo. Disse que soube da apreensão da arma na residência da ré em razão da movimentação da polícia, pois é vizinho, e que somente soube da existência da arma porque o filho de dona MARIA certa vez lhe disse que possuía uma arma. O filho de MARIA residia em uma casa ao lado da casa da denunciada, no mesmo terreno, casa essa que “ficou“ para a ré quando ele faleceu.
A ré, a seu turno (fls. 67ss), disse que a arma apreendida em sua casa pertencia ao seu filho JOSÉ, falecido há cerca de dois anos. Depois do falecimento do filho, quando decidiu desmanchar a casa onde ele morava, que fica no mesmo terreno da sua casa, decidiu recolher as suas coisas, dentre as quais essa arma. Disse que apenas a recolheu e guardou sob o colchão, nunca a tendo utilizado, pois não sabe nem pegar na mesma ou como se atira. Para ela não passava de um pedaço de ferro. Disse que a arma jamais saiu da sua casa. Sustentou desconhecer a obrigatoriedade de registrar ou entregar armas à polícia, e que nunca ninguém lhe disse que deveria registrar a arma; pensou que não fazia mal guardar a arma, pois nunca “puxou” prá ninguém, nunca brigou, nunca matou ninguém, nunca tirou para fora de casa, nunca mais mexeu na arma. Do jeito que estava lá na casa de seu filho, guardou embaixo do colchão, e ali continuava. Quando a polícia chegou em sua casa com o mandado de busca e apreensão, franqueou a entrada e permitiu que procurassem, e somente não disse onde estava a arma porque não lhe foi perguntado; se tivessem perguntado, teria dito.

O primeiro destinatário da sentença é o acusado. Na medida do possível as sentenças judiciais devem ser redigidas de uma forma que o cidadão possa compreendê-las, o que se faz especialmente relevante no caso dos autos, onde a ré é uma senhora idosa, que na data do fato tinha 68 anos de idade, e hoje já está com 71. Em seu depoimento demonstrou ser portadora de uma simplicidade muito comum para pessoas da sua idade e da sua condição social que, segundo revelou, não é lá das melhores, pois mora em uma casinha simples, de chão batido. Mal sabe assinar o nome.
Então, a fim de facilitar a sua compreensão, nos parágrafos seguintes vou procurar ser o mais claro possível, permitindo que a dona MARIA compreenda tudo o que está sendo dito:

Pois é, Dona MARIA: agora é proibido guardar arma em casa. Se quiser possuir arma de fogo tem que ir na Polícia Federal com uma série de documentos e provar que realmente precisa de uma arma. Daí o Delegado vai analisar o caso e, se achar possível, irá permitir que a Senhora adquira uma, mas antes tem que fazer um curso prá aprender a manusear e atirar, até porque, se não, nem adianta ter arma em casa.
Nem mesmo como lembrança do seu falecido filho a senhora pode manter essa arma guardada, e também não faz diferença nenhuma se a senhora guarda essa arma embaixo de um colchão e não pretende utilizá-la, se não briga com ninguém e nem sabe atirar. Dizem que é assim porque mesmo uma arma que fique guardada um dia pode acabar caindo na mão de um criminoso, e então o governo quer diminuir o número de armas nas mãos do povo, prá ver se diminui a criminalidade.
No seu caso, porém, tem um detalhe: A arma que era do seu filho foi apreendida na sua casa no dia 09/10/09, e nesse dia já estava em vigor uma lei que prorrogou o prazo para que a Senhora fosse até a polícia regularizar a posse da arma. Só para a senhora saber, trata-se da Lei nº 11.922/09, que modificou o art. 30 da Lei nº 10.826/03 que, as duas juntas, estabeleciam que o cidadão teria até o dia 31/12/2009 para registrar as armas que tinha em casa.
Então, mesmo que a senhora tenha dito que nem sabia que precisava regularizar a arma, a verdade é que no dia em que ela foi encontrada na sua casa, por alto, a senhora não tava cometendo crime nenhum, porque ninguém pode garantir que nos dois meses que a senhora ainda teria para regularizar a situação a senhora não viria a ser informada, e procedesse de acordo com a Lei, providenciando o registro ou até mesmo entregando a arma para a Polícia, já que a senhora falou que não tinha intenção nenhuma de usá-la.
Só tem um probleminha. É que falaram que a arma do seu filho tava com a numeração raspada, então mesmo que a senhora quisesse não teria como regularizá-la, pois armas assim são proibidas. Mas isso não é um problema tão grande, porque mesmo assim a senhora podia entregá-la para a Polícia sem nenhuma dificuldade.
Além do mais, os peritos lá de Porto Alegre que examinaram a sua arma (fls. 32ss), não disseram que ela estava com a numeração raspada. Na verdade, eles disseram “que se trata mais provavelmente de uma arma artesanal”, e armas artesanais obviamente não possuem numeração. Esses mesmos peritos também disseram que a sua arma “aparentemente” era do calibre .38 longo, uma arma que é permitida. Eles disseram que ela podia usar munição do calibre .357 Magnum, mas além de não ser essa a munição que tinha na arma no dia que apreenderam, a lei que trata desse assunto diz que são de uso restrito “armas de fogo curtas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia superior a (trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo, os calibres .357 Magnum, 9 Luger, .38 Super Auto, .40 S&W, .44 SPL, .44 Magnum, .45 Colt e .45 Auto”. Mas os peritos nem testaram com essa munição, e nem com os cartuchos que estavam nela, porque ficaram com medo (“devido ao risco para o atirador”), pois a arma era muito velha.
Então podia até ser que coubesse, mas essa não era a munição “comum” (em direito costumamos partir do pressuposto de que a lei não possui palavras desnecessárias) da sua arma, tanto que os peritos disseram que ‘provavelmente’ ela era uma arma calibre .38, e estava municiada com munição .38.
E lá nas fls. 38ss, outra equipe de peritos disse apenas que “ao exame visual macroscópico e/ou com auxílio de instrumento ótico na arma em questão, não foi constatado a gravação do número de série”. Eles também deram uma examinadinha nas “regiões normalmente destinadas à gravação do número de série”, mas não acharam nada que indicasse que havia ali algum número gravado (fl.39).
Então, não tem nenhuma prova no processo de que a arma que a senhora estava guardando estava com a numeração raspada.
Sendo assim, Dona Maria, foi por pouco, já que a senhora tinha apenas mais um mês e uns dias para entregar a sua arma para a Polícia, mas tenho que lhe dizer que na verdade a senhora não cometeu crime nenhum.
Só tem uma coisinha: Eu não vou poder mandar lhe devolver a arma, porque agora já não dá mais para regularizá-la, pois o prazo terminou no dia 31/12/09. Além disso, mesmo que desse tempo, a senhora não iria poder regularizá-la, pois para que isso aconteça é preciso que a arma tenha uma numeração de fábrica, e a sua não tem. A senhora vai ter que ficar com outras coisas de lembrança do JOSÉ.
Outra coisinha: não dê bola para o que o JOÃO CARLOS falou na audiência (fls. 62ss). Tá na cara que ele só disse que a senhora, com seus quase setenta anos o tinha ameaçado com arma de fogo porque andava de birra com a sua filha. Eu acho até que foi só por isso que ele pediu para a Polícia ir lá na sua casa, mas isso já não vem mais ao caso.

Pelo exposto,
ABSOLVO MARIA A.P.S das imputações lançadas na denúncia, nos termos do art. 386, inc. III do Código de Processo Penal.
Custas pelo Estado.
Transitada em julgado a sentença, preencha-se e envie-se o boletim estatístico.
Registre-se a sentença.
Intimem-se.
Cumprido, arquive-se com baixa.
Cruz Alta, 20 de janeiro de 2012.

Ricardo Luiz da Costa Tjader
Juiz de Direito